Demorei algum tempo para assistir Entrevista com o Demônio, por algo que tem me atormentado nos últimos anos: o desinteresse de ir até o cinema. É claro que ainda amo filmes e ainda amo o ambiente acolhedor do cinema, mas tudo se tornou tão pasteurizado, tão burocrático (e tão caro!) que tenho escolhido com cuidado as obras que aprecio diretamente na tela escura. As demais, espero o lançamento no streaming.
E foi exatamente isso o que ocorreu com o novo filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes. Deixei para depois. Mas, devo confessar, me arrependi um pouco. Principalmente porque o filme é muito melhor do que eu esperava. E (talvez) seja um dos melhores filmes de terror lançado nos últimos anos, devido ao estilo e (outro talvez) roteiro.
Confesso também que é a primeira vez que vejo algum trabalho dos diretores, e o impacto é inegável. De cara, me senti cativado pela habilidade dos Cairnes em misturar horror e crítica social sutil, abordando questões que fazem muito sentido e merecem ser abordadas nos tempos atuais, mas que também nos desafiam a enfrentar o que preferimos ignorar: até que ponto a aparência tomou o lugar da essência?
Na obra, somos transportados para uma realidade desconfortavelmente familiar, onde as aparências se tornam uma máscara tão densa que a verdade se perde em algum lugar entre o brilho dos sorrisos falsos e as intenções escondidas.
É nesse universo que conhecemos Jack Delroy (David Dastmalchian), apresentador do decadente talk show Night Owls. Pela queda de audiência constante, ele passa a recorrer a pautas e convidados polêmicos, em um esforço para reconquistar o público. Dessa forma, para criar um episódio especial de Halloween, ele decide trazer ao palco a parapsicóloga June Ross-Mitchell (Laura Gordon) e sua paciente, a garotinha Lilly (Ingrid Torelli), sobrevivente de um culto satânico e supostamente possuída por uma entidade maligna.
O que imediatamente se destaca em Entrevista com o Demônio é sua estética única, que nos coloca em um terreno instável. Naquele ambiente televisionado, a realidade e fantasia se misturam de forma quase imperceptível. Para mim, foi como se eu tivesse sido transferido para os anos 90, assistindo o antigo Domingo Legal, com o Gugu Liberato, ou o Domingão do Faustão. Mesmo com os formatos totalmente diferentes, os artifícios em nome da audiência são os mesmos.
Optando por emular um programa de televisão, os irmãos Cairnes criam um formato imersivo e totalmente real, que me fez emergir. As imagens de bastidores durante os intervalos do programa, filmados em preto e branco, parecem um capricho estilístico à primeira vista. Mas essa escolha se tornou um dos grandes acertos do filme, uma vez que apresentam em um ritmo hipnótico, em um efeito que lembra o found footage, mas que evita a repetição óbvia do estilo.
Dessa forma, cada imagem da trama carrega consigo a sensação de uma realidade forjada para encobrir verdades sombrias. A estética televisiva não nos dá apenas a perspectiva de quem assiste, mas de quem espia um espetáculo decadente e cuidadosamente construído para esconder o vazio. Essa sensação de voyeurismo nos convida a questionar, a cada cena, o que realmente está acontecendo por trás do que vemos.
Nesse ponto, vale um destaque para as atuações impecáveis. David Dastmalchian, que encarna o apresentador de talk show Jack Delroy, dá uma verdadeira aula de nuance e controle emocional. Ainda mais quando consideramos que o ator se destacou especialmente em personagens cômicos. Ainda assim, ele encarna um protagonista que, à primeira vista, parece um homem amável, alguém com quem nos identificamos facilmente e, até certo ponto, em quem confiamos.
Dastmalchian constrói uma camada de afeto e familiaridade no personagem, principalmente por conta de sua história de superação e suas perdas irreparáveis, que nos faz torcer por ele, mesmo quando começamos a perceber algo sombrio por trás de sua expressão serena.
É sua habilidade em transmitir essa dualidade, o equilíbrio entre a bondade aparente e o cinismo latente, que torna Jack Delroy fascinante. Sua performance evoca o próprio dilema do filme: como as aparências podem nos enganar e manipular.
Mas o maior destaque vai para a jovem e talentosíssima Ingrid Torelli, que encarna a endemoniada Lilly D’Abo (ótimo sobrenome, aliás). Com uma intensidade e carisma surpreendentes para uma atriz tão jovem, Torelli mergulha no papel com um misto de inocência e perversidade, o que gera uma sensação perturbadora. Seu tom infantil e amoroso se transforma de forma inquietante em algo ameaçador, criando um personagem que desperta curiosidade e medo.
Por seu passado terrível dentro de uma seita, Lilly não é apenas uma jovem atormentada, mas uma incógnita. E Ingrid Torelli mostra tudo isso com um olhar curioso e assustado, que desperta muitas sensações enquanto transita entre o assustador e o doce. Isso deixa uma impressão poderosa em cada cena.
É por isso que afirmo que seu desempenho transcende o papel de uma criança possuída tradicional, com o qual já estamos mais do que acostumados. Ela cria uma presença quase hipnotizante, que nos prende e que, se dependesse de mim, já mereceria uma estatueta por sua intensidade e autenticidade assombrosas.
O roteiro de Entrevista com o Demônio é relativamente simples – e isso é uma virtude rara. Ao longo dos anos, é fácil encontrar filmes que tentam ser complexos e se perdem em reviravoltas que, no final, soam forçadas e artificiais. Os Cairnes, no entanto, não se preocupam em criar uma trama rocambolesca ou em encher o filme de explicações. Ao invés disso, permitem que o simples brilhe, e isso faz toda a diferença.
A simplicidade da história que propõe o que aconteceria se um exorcismo real fosse televisionado em rede nacional serve como um palco para os temas que realmente importam para jornalistas, como eu. Vale tudo pela audiência? Vale tudo pelo like? As respostas parecem óbvias para uma pessoa sensatas, mas a televisão não é feita por pessoas sensatas!
Em um mundo onde, muitas vezes, o superficial é supervalorizado, é revigorante ver um filme que não tenta complicar o que pode ser dito de maneira direta. E isso faz com que o filme tenha uma profundidade discreta, mas poderosa.
Talvez o maior triunfo de Entrevista com o Demônio seja sua capacidade de provocar um tipo de medo que ultrapassa o susto, o Jump Scare, e entra no território da inquietação. Enquanto o filme evolui, somos confrontados com um sentimento incômodo e quase claustrofóbico de viver em uma cultura obcecada pelo sucesso e pelo sensacional. Cada personagem, cada situação, parece carregado de uma tensão não resolvida, que é intensificada pela nossa própria cumplicidade com essas questões na vida real.
Há algo de assustadoramente real na sensação de desconforto que o filme evoca. O espectador, de certa forma, se vê refletido nessa narrativa, como se o espelho não estivesse apenas mostrando um demônio fictício, mas um monstro mais familiar: o mundo em que vivemos.
Vivemos em uma era onde a “positividade” e o “bem-estar” são literalmente produtos que vendemos nas redes sociais. Nesse contexto, o filme propõe um espelho distorcido, questionando até onde estamos dispostos a ir para proteger essa imagem idealizada. Os Cairnes capturam a essência de uma sociedade onde o julgamento do próximo é silencioso, mas constante, e onde qualquer desvio da norma é visto como uma ameaça à superfície perfeita.
Essa crítica é tão atual quanto urgente, e os Cairnes não hesitam em explorar como a cultura contemporânea valoriza a imagem acima do conteúdo. O horror, aqui, não vem apenas do sobrenatural ou do demônio que o título sugere e que realmente aparece em determinado momento da trama, mas da constatação de que estamos imersos em uma sociedade que exige máscaras e esconde intenções.
O final, marcado por um tom psicodélico e pirotécnico, foi criticado por alguns como um excesso, mas, pessoalmente, achei que ele se encaixa perfeitamente com a proposta do filme. Depois de construir uma tensão sustentada pela estética e pelo tom, o desfecho explode em um delírio visual que amplifica tudo o que o filme me fez sentir até ali.
É como se as aparências, finalmente, fossem estilhaçadas diante de nós, revelando o caos e o horror que sempre estiveram escondidos por trás de uma fachada cuidadosamente construída.
É claro que essa é uma escolha arriscada, mas também é necessária. Me soa como a representação visual da extravagância da nossa própria queda enquanto sociedade, do colapso inevitável de quem se dedica a viver uma vida artificial. É um clímax que encapsula o tema central do filme, nos lembrando que, quando a verdade enfim emerge, as aparências não têm como sobreviver.
Dito tudo isso, concluo que Entrevista com o Demônio não é apenas um filme de horror. Claro que funciona muito bem como um filme de horror, mas também atua como uma sutil (ou nem tanto) provocação. É uma bela análise de um mundo onde a aparência vale mais do que a essência, onde ser bom importa menos do que parecer assim. É uma obra que entretém ao mesmo tempo em que nos desafia a olhar para as nossas próprias máscaras e questionar o que realmente estamos escondendo.
Ao fim do filme, fiquei com uma sensação estranha. Uma ideia de que o verdadeiro terror não reside nas sombras, mas na luz artificial que criamos para esconder nossas próprias imperfeições. E isso me lembrou que, por trás de cada rosto sorridente e de cada “curtida”, há um abismo de dúvidas e contradições que a cultura das aparências jamais poderá preencher.
Em tempos de superficialidade, este é um filme que traz um olhar necessário sobre o vazio que se esconde sob a superfície de nosso próprio reflexo.