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    Blog do Matheus Prado

    Matheus Prado é professor universitário, jornalista, escritor e cineasta. Autor de quatro livros, ministra cursos sobre escrita criativa e storytelling.

    FUJA: quando o narcisismo se confunde com amor incondicional pelo outro

    Mesmo tendo estreado em abril de 2020, o longa Fuja não recebeu tanta atenção quanto poderia. Ao menos, não da minha parte, uma vez que só descobri sua existência recentemente. E tenho até vergonha de admitir, mas só fiquei sabendo sobre ele em um vídeo curto e sensacionalista do TikTok…

    Mas o fato é que fiquei absurdamente intrigado com a pequena cena em que a jovem Chloe buscava ajuda em uma farmácia para descobrir para que servia o remédio verde que sua mão havia comprado. Isso me fez procurar o filme na Netflix e também preciso dizer que sou grato por isso, uma vez que o filme de Aneesh Chaganty é um dos thrillers psicológicos mais tensos e angustiantes que assisti nos últimos anos.

    Preciso começar esse texto dizendo que ainda não assisti Buscando… (2018), filme anterior de Chaganty que trouxe notoriedade ao cineasta por seu caráter inovador. Isso porque o longa estrelado por John Cho foi inteiramente gravado usando apenas as telas de computadores e celulares.

    Fuja não é tão inovador assim no quesito linguagem, mas, ainda assim, a direção é um dos pontos altos. E não conhecer o trabalho do diretor, na minha experiência, foi algo bom, uma vez que sempre baixo as expectativas de um filme quando não estou familiarizado com o trabalho do realizador.

    Dessa forma, também já me deixei impactar logo nos primeiros segundos da cena inicial, que choca e cria tensão, mesmo revelando quase nada do plot. Mesmo assim, iniciei a trama cheio de teses e teorias, uma vez que a cena do TikTok já havia revelado parte do desenrolar dos eventos. Mas também preciso destacar que isso não foi ruim, uma vez que o próprio filme também não se esforça em esconder que há alguma coisa errada com a amorosa mãe Diane, vivida brilhantemente por Sarah Paulson.

    Fuja | Créditos: Netflix

    A importância de boas atrizes

    A trama de Fuja acompanha as dificuldades da jovem Chloe, interpretada pela novata Kiera Allen. Chloe sofre de uma série de doenças que afetam sua locomoção, sua respiração, seus batimentos cardíacos e ainda a obrigam o tomar dezenas de remédios todos os dias. Ao mesmo tempo, ela tenta ter uma vida normal, buscando uma vaga em uma universidade longe da região onde mora apenas com a mãe.

    E aqui já vale destacar as atuações impecáveis de Sarah e Keira como mãe e filha. A jovem, que debuta em seu primeiro filme, oferece uma representação visceral de Chloe, transmitindo uma vulnerabilidade palpável e uma determinação admirável. Já Sarah Paulson brilha no papel de Diane, alternando entre o carinho maternal e uma ameaçadora sociopatia. É impossível não dizer que a química entre as duas atrizes é parte fundamental do sucesso do filme.

    E pesquisando logo depois de assistir, descobri que Kiera Allen, assim como sua personagem, também é cadeirante, devido a uma desordem motora não identificada, que acabou sendo diagnosticada em 2014. Desde então, ela usa uma cadeira de rodas. Mas isso não a impediu que se tornar uma das grandes atrizes da nova geração de Hollywood.

    Fuja | Créditos: Netflix

    Pensando nessa questão da representatividade, quero destacar uma fala da atriz durante uma entrevista para a revista Harper’s Bazaar:

    Existe uma grande tendência de atores com deficiências serem celebrados por um papel e não conseguirem oportunidades do mesmo nível novamente. Isso me assusta. Mas contanto que eu esteja trabalhando com o que gosto, com bons colegas, me sentirei grata.

    Considerando que não vimos mais filmes grandes com a atriz, fico triste em constatar que este realmente é um risco real… O que é absurdamente injusto, uma vez que seu desempenho excepcional em Fuja realmente faz com que o filme seja lembrado, mesmo com seu baixo orçamento e sua história relativamente simples.

    Fuja | Créditos: Netflix

    Um amor narcisista

    Outro ponto marcante de Fuja é a forma como o longa lida com a ideia de amor incondicional. Afinal, se este é o sonho dos jovens apaixonados, a história mostra que amor demais pode ser um grande problema. Neste caso, ainda existe um agravante, uma vez que a grande vilã é a mãe, aquela cujo amor é sempre descrito como belo e puro.

    E o trabalho de direção foi certeiro ao demonstrar o rompimento das barreiras quando o egoísmo e a megalomania se confundiam com amor platônico e incondicional. Lembrou-me uma versão cruel e aterradora de Procurando Nemo (2002), da Pixar. Afinal, todos sabemos que, antes de viver sua jornada transformadora de amadurecimento e descoberta, Marlin estava disposto a romper algumas barreiras para manter Nemo sempre seguro, mesmo que o peixinho vivesse infeliz.

    Em Fuja, mesmo quando vemos Diane cometer brutalidades imperdoáveis, seus olhos transbordam amor. Um amor perverso e doentio, distorcido pela sua própria necessidade de consertar os erros do passado e superar algumas tragédias, mas, ainda assim, um tipo de amor. E isso deixa tudo mais assustador.

    Dessa forma, o filme nos faz questionar o que significa confiar em alguém e até que ponto podemos ignorar os sinais de alerta. Mais do que isso: nos faz enxergar sinais de alerta em tudo. Eu mesmo comecei a pensar se não estou tentando proteger demais minha própria filha… e olha que ela só tem seis meses. Ela precisa de proteção.

    Fuja | Créditos: Netflix

    Muito bom, mas sem surpresas

    Mas se há algo que me incomodou no filme, foi a pouca vontade de esconder o plot central dos desavisados que chegaram ao longa sem assistir trailers ou ler sinopses. Eu entendo que isso seria quase impossível, mas não posso deixar de pensar em como seria incrível começar assistindo um filme sobre a luta de uma mãe carinhosa e logo ser surpreendido pela reviravolta de que essa mãe, na verdade, é uma maluca narcisista e obsessiva.

    Mas o filme nunca tenta esconder isso. As primeiras cenas já deixam claro que existe almo muito estranho naquela mãe que pinta a filha como uma garota forte para os outros, mas que a entope de remédios e a impede de ter celular, internet ou qualquer outro tipo de contato com o mundo exterior.

    E acaba que o que poderia ser um grande plot twist no meio do filme acaba sendo revelado até mesmo na sinopse da página do filme no serviço de streaming. E é claro que isso também não estraga a experiência, mas poderia ter sido ainda mais interessante ver sobre esse outro ponto de vista.

    Fuja | Créditos: Netflix

    Para refletir

    Por fim, mais do que puramente me divertir, Fuja me fez pensar.

    Me fez rever minhas ações, questionar minhas atitudes para com minha filha e tentar entender o que é cuidado de verdade e o que é só o velho e puro narcisismo, hoje tão comum em pais e mães influenciados por redes sociais e pelo espírito “gratiluz” que impregna estes meios.

    Se a protagonista me deixou impressionado por sua força e sua vontade de vencer aquela situação pavorosa ao qual foi submetida, a vilã me deixou ainda mais impressionado por sua proximidade com a realidade, em um mundo onde os pais se preocupam mais com seu próprio umbigo do que com qualquer outra coisa. E ainda fazem isso com a desculpa do amor incondicional e do cuidado extremo com os filhos.

    Pontuação individual

    direção
    atuação
    fotografia
    montagem
    roteiro

    Sobre a obra

    Chloe é uma adolescente que sofre de inúmeras doenças, inclusive paralisia, que a colocou em uma cadeira de rodas. Ela é educada em casa por sua mãe, Diane, e aguarda a carta de resposta da faculdade. No entanto, o comportamento estranho apresentado pela matriarca começa a deixar a jovem desconfiada de que algo está errado...

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