Alguns filmes não apenas nos convidam a pensar, mas nos obrigam a isso. São aqueles que deixam cicatrizes emocionais e intelectuais, que nos seguem mesmo depois que as luzes do cinema se apagam. Jurado Nº 2, de Clint Eastwood, é exatamente esse tipo de filme. Mas, ironicamente, enquanto nos convida a refletir sobre questões fundamentais de moralidade e justiça, sua própria recepção foi marcada pela falta de justiça.
No Brasil, Jurado Nº 2 não passou pelas telonas. Um filme dirigido por Clint Eastwood, com um elenco impecável e uma narrativa que desafia nossas convicções mais profundas, foi relegado ao streaming no Max. Lá fora, enfrentou esnobação crítica em alguns círculos, com muitos se deixando influenciar pelas opiniões políticas do diretor.
Para continuar com essa crítica, quero te apresentar o conceito de “Morte do Autor”, uma teoria crítica literária e cultural popularizada pelo filósofo francês Roland Barthes em seu ensaio homônimo de 1967. Essa ideia propõe que a interpretação de uma obra deve ser desvinculada da biografia, intenções ou opiniões pessoais de seu criador. Segundo Barthes, uma vez que a obra é lançada ao público, ela deixa de pertencer exclusivamente ao autor e passa a ser moldada pelas percepções, interpretações e experiências de cada espectador ou leitor.
A essência dessa teoria reside na defesa de que a arte deve ser julgada por seus próprios méritos. O texto (ou filme, ou pintura) deve ser autônomo, e o autor, como figura histórica ou pessoal, não deve ser usado como chave exclusiva para entendê-lo. Ao reduzir uma obra às opiniões ou intenções de quem a criou, corremos o risco de limitar seu significado e ignorar as infinitas possibilidades de interpretação que ela pode oferecer.
Na prática, a “Morte do Autor” desafia a tentação de misturar a arte com o artista. No entanto, em um mundo hiperconectado, onde a vida pessoal dos criadores muitas vezes se torna pública, a teoria é constantemente ignorada. Obras brilhantes, como Jurado Nº 2, são muitas vezes avaliadas menos por suas qualidades intrínsecas e mais pelo prisma das opiniões ou escolhas pessoais de seus autores.
E ai em o ponto mais importante: a opinião do autor nem sempre está errada! Clint Eastwood não é um monstro. Muito pelo contrário. Ele é um homem de 94 anos, conservador, que tem uma visão política coerente com sua história. Simples assim. Mas em uma Hollywood cheia de ideias progressistas, para não usar a famigerada expressão “Woke”, esse tipo de posicionamento é quase um crime.
Mas vamos voltar ao filme. Baseado em uma premissa simples, mas engenhosamente elaborada, Jurado Nº 2 segue mostra a história de Justin Kemp (Nicholas Hoult), um homem comum convocado para um júri em um caso de assassinato. O que parecia ser um julgamento direto logo se torna um dilema moral esmagador quando Justin descobre que ele pode ser, involuntariamente, o responsável pelo crime.
Com essa trama interessantíssima, o filme explora o peso da culpa e o conflito interno do protagonista, ao mesmo tempo em que coloca o espectador na cadeira do júri, desafiando-nos a decidir: o que é justiça, afinal?
Com suas décadas de experiência, Clint Eastwood nos oferece uma direção incrivelmente precisa. Cada cena é carregada de tensão, como se o próprio ar no tribunal fosse palpável. Mais impressionante ainda é a maneira como ele lida com o subtexto, aquilo que não é mostrado, mas que deixa o público debatendo possibilidades por dias. Nesse aspecto, o final é quase catártico: Houve justiça? A moralidade foi respeitada? Ou o sistema, mais uma vez, falhou?
Jurado Nº 2 nos confronta com perguntas universais sobre bondade, moralidade e justiça. Justin Kemp não é um herói típico, nem mesmo um vilão. Ele é um reflexo de todos nós: imperfeito, vacilante, tentando equilibrar suas escolhas pessoais com um desejo de fazer o que é certo. Hoult entrega uma atuação tão vulnerável que é impossível não se sentir abalado por sua luta interna.
O restante do elenco é igualmente brilhante. Zoey Deutch, no papel da esposa de de Justin é doce e humana, enquanto Toni Collette, como a promotora, personifica a obsessão pela justiça e pelo sucesso, que muitas vezes desumaniza os envolvidos. Juntos, o elenco transforma o tribunal em um campo de batalha psicológico onde cada olhar e cada pausa diz mais do que mil palavras.
O clímax do filme é uma obra de arte em si. Sem revelar spoilers, basta dizer que Eastwood opta por não entregar todas as respostas, entregando uma narrativa ambígua, que força o espectador a refletir sobre o que testemunhou. Para mim, essa ambiguidade é o que faz de Jurado Nº 2 um filme inesquecível.
Sempre digo para os meus alunos que se um filme acaba e não te faz pensar sobre ele e querer conversar sobre ele, este filme fracassou. E aqui está a grande vitória de Eastwood: Jurado Nº 2 não apenas nos faz pensar, mas também nos desafia a examinar nossos próprios valores.
Enquanto debates sobre política e ideologia continuam ofuscando a recepção do filme, fica claro que o verdadeiro fracasso não é do filme, mas da crítica e do público que se recusaram a vê-lo pelo que realmente é: uma obra-prima moderna. Jurado Nº 2 merece ser redescoberto e celebrado, não apenas por suas atuações impecáveis e direção magistral, mas também por sua coragem em nos confrontar com questões que preferimos evitar.
No final das contas, este filme é uma experiência que vive conosco, como um júri eterno dentro de nossas próprias consciências. Se você ainda não assistiu, faça um favor a si mesmo: sente-se, assista e permita-se pensar. Afinal, a arte mais poderosa é aquela que nunca sai de cena em nossas mentes.